sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Portugaia... em 1929

Jornal de Notícias

por joaquim fernandes historiador, universidade fernando pessoa


Autor recriava a margem sul como o centro comercial "chic" da Budapeste portuguesa



Recentemente, o futuro comum de Porto e Gaia, fundidas numa única metrópole, foi mote para debate entre defensores e adversários da ideia. Afinal, nem se trata de uma originalidade ou de uma aparente "heresia" regional, proposta no dealbar do século XXI é que já em 1929, um semanário lisboeta - o "ABC" - propunha aos seus leitores uma "reportagem profética", ao jeito de folhetim, intitulado "O que será o Porto no ano 2000?". Aí, o anónimo autor, depois de invocar os génios da reconversão urbana de Barcelona (Leon Goveaud), Paris (barão Haussmann) e Berlim (Eurik Weber), leva-nos a percorrer a cidade de Portugaia, que, na condescendente opinião do publicista, não se colocara "ainda no ritmo com as grandes transformações da época", ao invés de Lisboa, que entrara "a galopar no futuro".

Portugaia é assim a nova reencarnação utópica (desta vez com lugar, de facto) de uma nova metrópole imaginada há 77 anos - a "Budapeste portuguesa", como se anuncia um dos títulos dos fascículos da prosa de antecipação. Os 103 anos do redactor "X", do jornal ABC (talvez o intrépido Reinaldo Ferreira...), por obra de diabólicos (é o termo) avanços nas agendas científicas, não o inibem de apanhar o avião "Coutinho" (o herói aviador então endeusado ) que parte da gare suspensa da Estação Central dos Serviços Aeronáuticos, no Lumiar, em Lisboa. Os funcionários são informadores-mecânicos e tudo se processa por autómatos (Karel Kapec tinha inventado o robot em 1921), com notórias ressonâncias de "Metrópolis", o filme de culto de Fritz Lang, que as ilustrações do texto deixam transparecer.

E, calcule-se, para pasmo do nosso guia ao futuro, "em 17 minutos apenas", o "Expresso do Porto" em que viajava o longevo passageiro, com mais 300 viajantes, descia na gare do antigo Porto, instalada onde outrora fora o Barredo. O atónito redactor concede que, enquanto Gaia ganhara protagonismo, "fizera-se América", o Porto permanecera europeu. "Como num tabuleiro de xadrez", as avenidas transversais contornam o gigantismo da City de Gaia, centro comercial "chic" da Budapeste nacional, de onde partem enxames de táxis aéreos. As revelações deste futuro não cessam e não se ficam pela margem sul; dos lados do que "outrora fora a estação de Campanhã" desce uma linha de comboio submarino que atravessa o rio e desemboca na parte baixa de Gaia, a 50 metros da superfície, atingida por velozes "ascensores em espiral". Amplas galerias envidraçadas imitam o luxo caótico de uma parisiense Rua de La Paix. Aliás, o tom da escrita ressoa à tradição das utopias urbanas ao estilo do francês Louis-Sébastien Mercier, que no romance iluminista "L'an 2440, rêve s'il en fut jamais", de 1771, reencontra Luís XIV, ou do inimitável Júlio Verne que, em 1863, projectara a versão da cidade-luz dos anos de 1960.

Nesta sua revisita a Portugaia, vista do alto do Barredo, ora extinto, o redactor "X" antecipa que "os transformadores do Porto criaram jardins nos arredores da cidade a eles ligados por um veloz metropolitano". E, cúmulo da premonição, o texto informa que "a antiga estrada da Circunvalação deixou de ser estrada para se transformar numa avenida com três vezes a largura da antiga estrada", uma via que "não é já uma fronteira", mas algo integrado na cidade e arredores. Terá o redactor-visionário viajado também no tempo ?

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